Mayara quer reformar seu barraco que pegou fogo. Elton pretende arcar com as despesas do nascimento da quarta filha, fruto de uma gravidez de risco que deve deixá-lo fora do mercado de trabalho por algum tempo, enquanto ele cuida da esposa em recuperação. Beneficiários do Auxílio Brasil (programa que substituiu o Bolsa Família), ambos pretendem recorrer ao empréstimo consignado (quando as parcelas são descontadas diretamente da fonte — salário, aposentadoria ou benefício, por exemplo) aprovado pelo governo federal, como parte do pacote de medidas para estimular a economia, às vésperas das eleições de outubro, quando o presidente Jair Bolsonaro (PL) tenta ser reeleito.
Auxílio turbinado e consignado: as medidas para injetar dinheiro no bolso dos brasileiros a 2 meses da eleição
Com juros de até 79% ao ano, segundo instituições financeiras consultadas pela BBC News Brasil, o valor a ser devolvido pelos beneficiários será quase o dobro do emprestado. Com renda familiar mensal de até R$ 210 por pessoa, pelos critérios do Auxílio Brasil, eles se dizem cientes dos riscos, mas apostam em uma melhora incerta das condições de vida à frente para pagar parcelas que devem consumir até 40% do benefício durante 24 meses.
E isso num momento em que mais de 78% dos lares brasileiros estão endividados e 29% têm contas em atraso, segundo dados da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic) referentes a julho desde ano. Ambos os indicadores estão em patamar recorde, no nível mais alto registrado em 12 anos. Quem já decidiu que não vai tomar o crédito consignado cita o medo de se endividar ainda mais e ficar em situação pior à frente como principais motivos por trás da decisão de passar longe da nova modalidade de empréstimo.
“Eu até pensei em pegar, mas depois fui analisar e pensei assim: a gente vai contrair uma dívida de dois anos e o auxílio aumentou agora para R$ 600, mas isso só vai até dezembro”, diz a diarista Tamires Santos, de 33 anos e moradora de Guaianases, na zona leste de São Paulo. “Vem o dinheiro agora, mas no mês seguinte você vai estar com mais uma dívida, porque esse dinheiro não vai dar para resolver todas as dívidas que você já tem. Então optei por não pegar, porque na realidade eu acho que é uma grande ilusão, você só vai se endividar mais ainda.”
O governo publicou na sexta-feira (12/8) decreto no Diário Oficial da União regulamentando o empréstimo consignado do Auxílio Brasil (Decreto nº 11.170/2022). A liberação do crédito pelas instituições financeiras ainda depende, no entanto, da regulamentação de normas complementares pelo Ministério da Cidadania, ainda sem data definida.
Segundo o ministro da Cidadania, Ronaldo Bento, a expectativa é de que a operação seja iniciada até o início de setembro. Enquanto grandes bancos optam por não conceder o novo empréstimo temendo prejuízos financeiros e de reputação, especialista em finanças pessoais alerta que o consignado do auxílio pode endividar ainda mais os mais pobres, comprometendo com o pagamento de parcelas e de juros um benefício que é usado para sobrevivência.
Na segunda-feira (15/8), entidades jurídicas, de defesa do consumidor e personalidades de diferentes setores lançaram uma campanha pedindo o adiamento do consignado do auxílio, até que estudos e análise técnica de especialistas sejam realizados. Entre os apoiadores da “Nota em Defesa da Integridade Econômica da População Vulnerável”, estão o Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), a Defensoria Pública do Estado de São Paulo e o Programa de Apoio ao Endividado da Faculdade de Direito da USP Ribeirão Preto.
“A concessão de crédito consignado para beneficiários de programas de transferência de renda, no presente momento, tende a trazer ainda mais dificuldades para essa população. Se os valores atuais são insuficientes para garantir uma vida digna, a possibilidade de comprometer até 40% desse valor com empréstimos condenará essas famílias ainda mais à miséria”, diz a nota.
Thais Carrança – @tcarran
Da BBC News Brasil em São Paulo
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